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Mensagens

Apneia

 Sempre esta coisa da escrita... De há uns anos para cá tornou-se uma necessidade como respirar. Tenho estado em apneia, eu sei. Não só, mas também, porque veio a depressão. Veio, assim, de mansinho, como que para não se fazer notar, instalando-se cá dentro (e cá fora). Começou por me devorar as entranhas qual parasita. Minou-me o corpo e o cérebro, sorvendo-me os neurónios e comendo-me as ideias, a criatividade e a imaginação. Invadiu-me a mente e instalou pensamentos neuróticos, medos, temores, terrores até. Fiquei simultaneamente cheia e vazia. E a vontade de me evaporar preencheu-me por completo, não deixando espaço para mais nada. Não escrevia há meses. Sinto-lhe a falta todos os dias. Mas havia (há) um medo tão grande de começar e só sair merda. E, no entanto, cá estou eu a escrever de novo. Mesmo que merda, a caneta deslizou sobre o papel e, agora, os dedos saltam de tecla em tecla como se daqui nunca tivessem saído. O olhar segue os gatafunhos, o pensamento destrinça frases e e
Mensagens recentes

Miúdos

Da janela, vejo os miúdos da escola a brincarem no recreio e invejo-lhes a liberdade.  Também era assim em pequena. Saltava e brincava sem amarras. Fazia pinos e rodas pelas ruas, solta como uma andorinha. Era livre. Tão livre quanto possível.  Hoje, não. Estou presa dentro deste corpo e mente. Corpo que não cede à mente. Mente que não tem espaço para viajar. Aqueles miúdos têm controlo no corpo porque ele lhes responde. Podem esticá-lo ou dobrá-lo a bel-prazer. Os miúdos têm o poder de observar, cheirar e tocar tudo o que vida lhes dá. A mente leva-os longe. Vai atrás da flor que flutua ao vento, do bichinho de contas que se enrola ao toque, da formiga que muda de percurso quando encontra um obstáculo. A mente deles está livre de merdas. Tem espaço para todas as coisas novas, é ampla, sem muros ou barreiras onde possa embater. Já a minha... Já a minha é qual um labirinto sem saída. Fica às voltas nas agruras da vida, nas paredes que fui erguendo, mas pedras em que vou tropeçando, nas

Amor Firme

Se não querem saber o fim do filme The Son é melhor não lerem este texto. Se continuarem a ler e ficarem a pensar "porra, agora já não vale a pena ir ver o filme", não digam que não avisei. O filme trata a questão de um filho com depressão e dos pais que tentam a todo o custo ajudá-lo, jogando com as suas angústias e dúvidas sobre o que é melhor para ele e com a expiação dos seus próprios "pecados". Quando digo "pecados" refiro-me àquelas atitudes e situações que podem fazer-nos sentir remorsos porque prejudicaram alguém que amamos. A parte do filme que vou focar é mesmo o final, por isso, caso não o queiram conhecer, é melhor pararem por aqui. Eu avisei! A determinada altura do filme, o filho tenta suicidar-se e é internado na ala psiquiátrica. Depois de alguns dias sem terem contacto com o filho menor, os pais são chamados ao hospital para decidirem se o filho deve continuar internado e em tratamento ou ir para casa. Durante a conversa com o médico, na p

A flauta

Já tive vários vizinhos no andar de baixo. Ao longo dos anos, vão mudando. Não conheço a maioria, mas não sei se por sorte ou azar, a casa tem sempre um morador pequenino que frequenta o 5º ou 6º ano. Sei isto, porque os ouço tocar flauta antes das aulas de Educação Musical. Todos eles ensaiam a musiquita antes de irem para a aula, ou seja, por volta das 7h-8h da manhã. Acordo a essa hora - quer queira, quer não - com um som desafinado em compasso vagaroso e estridente.   Por isso e porque detesto acordar antes de querer acordar, tenho várias questões quanto à insistência de se ensinarem as criancinhas a tocar flauta nas aulas Educação Musical: 1- Por que raio as aulas de Educação Musical são sempre na primeira hora da manhã? 2- Por que ainda se insiste em ensinar as crianças a tocarem um instrumento como a flauta que não é nada agradável de ouvir? 3- Por que os ensinam a tocar um instrumento, no qual nunca mais vão tocar, ouvir ou sequer tirar da gaveta, após estes dois anos lectivos?

Fios de luz

Há uma imagem que me acompanha há muitos anos. Vejo fios de luz que saem pelos buraquinhos dos estores meio corridos. Cheira a colchão forrado a plástico. Plástico lavado várias vezes, mas ainda com um leve cheiro a urina de criança. É hora da sesta e estou na sala dos quatro ou cinco anos no infantário.  Várias vezes, quando fecho os olhos, vejo isto e sinto um misto de nostalgia e liberdade. A sensação é prazerosa e assemelha-se a um regresso ao ventre materno. É como se ainda estivesse ali, como se nunca tivesse saído dali. A minha essência talvez ainda por ali more, talvez tenha ficado por lá ou nunca tenha de lá saído. Dali e da casa da minha bisavó. Onde estou com ela, com a minha tia-avó e com a Amélia. O cheiro aqui é a café acabado de fazer na antiga cafeteira e a sabonete "Feno de Portugal".  A minha bisavó velhinha está junto à lareira - não em frente, porque faz muito calor, mas ao lado da lareira para não se constipar - faz fatinhos de malha a uma só agulha para

Palavras lançadas ao vento

Morte, vida, vida entre vidas Fundo poético, poesia das coisas Coisas sem sal, coisas salgadas A pena, piedade, piedadezinha Tudo morre. Um dia a tristeza não vive, um dia A doença à porta O amor atrás da porta, à escuta O que importa sem porta? "Morre sangue velho dos avós" A maldade no peito, a sacanice, a inveja mascarada de poder A dor foge, foge até ao fim do mundo e encontra nas pedras a saudade Descobre o frio na barriga, a ponta do iceberg à janela Mas a janela fechada e o quarto às escuras A luz no fundo da fechadura O coração entreaberto Um sonho iluminado, um pensamento obscuro, uma ilusão A vida ao contrário A vida esquecida sem janelas nem portas Às escuras, a saída pela entrada A infância perene, a velhice imune aos gritos dos avós Os rios límpidos, congelados, transparentes E o fim que começa à deriva num barco amarelo torrado com letras na proa e velas a cair para o mar Sorte a de quem navega em alto mar Sorte a de quem tem as estrelas como guia Infeliz de que

Primavera

Cheira a Primavera. Estranho ser o mesmo cheiro da quinta, aquele que sinto aqui da minha janela em plena cidade. Cheira a flores e a terra. A gatos, a vento e a inocência. À inocência que me recorda os meus saltinhos e subidas às árvores de pequena. Quando inspiro é como se a infância me entrasse narinas adentro; é como se a quinta ainda existisse; como se tu e o avozinho ainda por aqui andassem. As andorinhas já rondam a sua casa de férias na minha janela. Ainda não entraram, mas rondam-na. Como no dia em que nos deixaste que se puseram em fila pousadas no meu parapeito. Nunca mais fizeram isso. Só ali pousaram quando nos deixaste. E hoje, esvoaçam por aqui e tu já não estás. Foste-te em cinzas e as andorinhas continuam a existir. E Primavera voltou sem a tua permissão. Que ousadia. Como pode ela voltar assim quando já não estás? Tenho saudades tuas como tenho da minha infância. Levaste-a contigo, sabes? Os ensinamentos que me deste ficaram desenraizados com a tua partida. Perderam a