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Tenho uma tatuagem no meio do peito

Ontem, no elevador, olhei ao espelho o meu peito que espreitava pelo decote em bico da camisola, e vi-a. "Tenho uma tatuagem no meio do peito", pensei. Geralmente, não a vejo. Faz parte de mim, há dez anos, aquele pontinho meio azulado. Já quase invisível aos meus olhos, pelo contrário, ontem, olhei-a com atenção, porque o tempo já me separa do dia em que ma fizeram e me deixa olhá-la sem ressentimentos. À tatuagem como à cicatriz que trago no pescoço.

A cicatriz foi para tirar o gânglio que confirmou o linfoma. Lembro-me do médico me dizer "vamos fazer uma cicatriz bonitinha. Ainda é nova e vamos conseguir escondê-la na dobra do pescoço. Vai ver que quase não se vai notar". Naquela altura pouco me importava se se ia notar. Entreguei o meu corpo aos médicos como o entrego ao meu homem quando fazemos amor.
"Façam o que quiserem desde que me mantenham viva", pensava. "Cortem e cosam à vontade! Que interessa a estética de um corpo se ele está a morrer?!"
Estranha esta entrega que nos põe à mercê de quem não conhecemos. É uma entrega total como a que fazemos ao amor. Profunda, completa, intensa...

A tatuagem foi a marcação dos limites da radioterapia. Dezanove sessões, dezanove dias, em que marcou o limite do local a queimar. Porque aquilo queima e mata tudo o que irradia.
Fizeram-na no mesmo dia em que construíram o molde da máscara que ia usar nas sessões. Uma máscara de uma espécie de rede que me prendia a cabeça e a segurava na inclinação certa. Mediram-me toda nesse dia. Fizeram-me esquadrias no peito e desenharam-me...
"Vamos fazer-lhe uma pequena tatuagem aqui no meio do peito", disseram.
"Depois sai?", perguntei.
"Não, fica para sempre, mas é apenas um pequeno pontinho!"
"Ok!", respondi. Mais uma coisa para sempre. Que fique num "sempre" longo.

Depois de marcada e mascarada, foram as sessões de radio numa sala de onde todos fugiam. Acho que foi o que me marcou mais da radioterapia: fugirem todos e deixarem-me ali sozinha pendurada numa máquina, de máscara na cara, a levar radiações sob vários ângulos.
Fui deixando de conseguir comer, nada me passava pelas goelas; de sentir o sabor dos alimentos, tudo me ardia na boca; deixei de ter saliva e ter de bochechar com saliva artificial para conseguir engolir em seco; tinha dores incríveis que me levaram a precisar de injecções para as amainar; enchi-me de fungos na boca, placas brancas que mais tarde me apareceram noutros sítios. O meu pescoço ficou muito vermelho e precisei de andar de lenço enrolado para o proteger do sol e a besuntá-lo com Biafine todos os dias. Tinha enjoos e fome ao mesmo tempo. Fiquei tempos sem poder arrancar dentes por medo do maxilar se partir. Ainda hoje, tremo quando tenho de arrancar um dente de baixo.
As radiações que a tatuagem delimitou fizeram-me careca da nuca para baixo, sem pêlo por debaixo dos cabelos que na parte de cima da cabeça já tinham crescido e escondiam o vazio da pele magoada.

Às dezanove sessões, pedi à médica para não fazer as duas que faltavam.
"Podemos ficar assim?", perguntei.
"Sim, mas era bom fazermos as duas sessões que faltam para completar o tratamento", respondeu-me.
"Ficamos assim, deixe lá isso!"
E ela deixou, felizmente.

Ontem, ao olhar-me ao espelho no elevador, lembrei-me que o pontinho que tenho no meio do peito e que parece um ponto negro, é cheio de história. No mero pontinho está tatuada a parte mais dolorosa dos tratamentos ao linfoma. Mais do que a quimioterapia que me levou muitos cabelos embora, mas nunca me pôs completamente careca, a radioterapia escreveu-me uma história no meio peito que está aqui discreta e em tons azulados.

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