Avançar para o conteúdo principal

Pedaços de Amor Que Se Exilam

Tenho a sensação que há pessoas que pensam que este blogue é um bocado cutxi-cutxi, que só fala das coisas boas na relação pais / filho, que fantasia um pouco quanto às qualidades da cria deste ninho.
Na verdade, pode haver momentos em que o amor que sinto pela dita cria se sobrepõe a uma análise objectiva dos factos, me tolda a visão da realidade ou me adoça a linguagem. Não obstante, tento relatar as cenas desta vida doméstica o mais clara e concisamente possível. Não só para ser transparente convosco, como também para respeitar uma honestidade comigo própria que tento preservar. No entanto, não me posso esquivar à tentação de preferir registar os momentos bons para a posteridade em desprimor dos maus que atiro para um canto do meu ficheiro interior de memórias na esperança que sejam esquecidos.

Para contrariar esta tendência em embelezar o blogue com os bons momentos passados neste ninho, hoje, venho relatar-vos um acontecimento que me acertou como se de uma facada se tratasse.

A necessidade de comprovar que o meu filho efectivasse a compra de uma senha para o almoço na escola foi o motivo que desencadeou a percepção de dilaceração deste coração de mãe.
Disse ao J. que, para ficar descansada que ele tinha almoço, já que não nos comunicamos por telemóvel, acompanhá-lo-ia à escola e compraria a senha com ele. Numa revolta descabida, a cria exalou jactos de pré-adolescência que vieram alojar-se directamente no meio deste peito. Intercalando lágrimas e despeito, reivindicou o direito de comprar a senha sozinha, porque os colegas a iriam gozar por ir com a mãe à escola e não poder mostrar como era grande e adulta e autónoma dos pais.
Ainda incrédula e a sentir abrir-se-me um buraco no meio do peito, digo-lhe que não admito tamanha falta de respeito quando o vejo expressar vergonha em ser visto na minha companhia. Responde-me que também já fui assim. Riposto-lhe que já fui adolescente sim, mas que não foi por isso que fui parva e que se eu respeito a sua necessidade de se mostrar grande e autónomo também exijo que me respeite enquanto sua mãe e que se os colegas o gozarem, são eles que são parvos e que ele tem a obrigação de negar compactuar com tamanha parvoíce. 
De coração ainda a sangrar e com as palavras a saírem-me tal golfadas ensanguentadas, acrescento que ele devia ter orgulho em ser acompanhado pela mãe, porque era sinal que a tinha, que há muitos miúdos que não têm essa sorte e que ele podia ser um deles se eu me tivesse ido quando a doença o houvera programado.
Desfeita, retiro-me para lhe preparar a lancheira e acalmar esta língua ofendida que se move sozinha ao som da dor que insiste em triturar-me por dentro.

Já mais calmos, voltamos a juntar-nos para o pequeno-almoço. Um "peço desculpa" rompe o silêncio e recolhe todos os pedaços que teimavam em fugir-me do centro, juntando-os de novo tal bolhas de mercúrio à procura umas das outras.
Contudo, fica a percepção que o amor não é inquebrável, apesar da capacidade exclusiva de se reconstruir e fazer pleno de novo.

Comentários

  1. Os meus ainda não estão nessa idade, mas palpita-me que terei muitos momentos assim. Que haja sempre um "peço desculpa" como epílogo de todos eles ;)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Que sorte eles ainda não estarem nesta fase, Piskito. Mas lá chegarão!
      O que vale é que esta fase também tem coisas muito boas.
      Bjs

      Eliminar
  2. Espero que não leves a mal, mas percebo muito bem o que o teu filho sentiu. Calculo que daqui a uns anos perceba ainda melhor o que tu sentiste :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu também percebo, mas não aceito, não posso aceitar.
      Ele ainda só tem dez anos, mas pensa que já tem doze.
      Tem que ir com calma!
      Bjs

      Eliminar
  3. Ora vamos lá Sophie... Duas ou três coisas.
    1º uma beijoca e um pouquinho de "bettadine " (?) para essa ferida sangrada e cuja cicatriz vai abrir muitas mais vezes.
    Somos pedagogas e mães... e uma coisa não ajuda à outra. :)~
    Eles, querem ser autónomos e nós gostamos de nos "exibir" ao lado deles.
    Agora e sempre. Essas "subtilezas" vão chegar com o tempo...E , somos nós com os filhos , como com os homens/companheiros. Fazê-los sentir ter razão... e procurar as estratégias proverbiais, "todo o burro come palha, o que é preciso é saber-lha dar... ". Breve, vai chegar o tempo em que vai andar atrelado a si , como se seu namorado fosse, seu dono... É todo um vai vem permanente. Não se amofine...
    Beijnho grande e desabafe sempre.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Anamar, não sou professora. Na realidade, neste momento, não sou nada, porque estou desempregada. Ou melhor, sou desempregada. :)
      Eu não quero que ele ande atrelado a mim como eu não ando atrelada a ele, mas não admito que se envergonhe de andar comigo. É o mínimo de respeito que lhe posso exigir e exijo-o. ;)
      Bjs

      Eliminar
  4. Já passei por isso, mas penso que é importante que eles começem a fazer as coisas sozinhos, a assumir as suas pequenas responsabilidades, acho que só assim se vão preparando para enfrentar os problemas que vão surgindo sozinhos embora com o nosso apoio na retaguarda.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Rosinha,
      Também acho que devem fazer as coisas sozinhos, mas o meu filho tem dez anos e com dez anos já tem várias responsabilidade que assume muito bem e de que me orgulho.
      Este não foi um caso de mãe coruja, eu não quis super-protegê-lo, mas certificar-me que ele conseguia comprar a senha e que não ficaria sem almoço.
      O que me entristeceu foi a vergonha por ser visto acompanhado por mim.
      Bjs

      Eliminar

Enviar um comentário

Vá lá, digam qualquer coisinha...
...por mais tramada que seja...

Mensagens populares deste blogue

Apneia

 Sempre esta coisa da escrita... De há uns anos para cá tornou-se uma necessidade como respirar. Tenho estado em apneia, eu sei. Não só, mas também, porque veio a depressão. Veio, assim, de mansinho, como que para não se fazer notar, instalando-se cá dentro (e cá fora). Começou por me devorar as entranhas qual parasita. Minou-me o corpo e o cérebro, sorvendo-me os neurónios e comendo-me as ideias, a criatividade e a imaginação. Invadiu-me a mente e instalou pensamentos neuróticos, medos, temores, terrores até. Fiquei simultaneamente cheia e vazia. E a vontade de me evaporar preencheu-me por completo, não deixando espaço para mais nada. Não escrevia há meses. Sinto-lhe a falta todos os dias. Mas havia (há) um medo tão grande de começar e só sair merda. E, no entanto, cá estou eu a escrever de novo. Mesmo que merda, a caneta deslizou sobre o papel e, agora, os dedos saltam de tecla em tecla como se daqui nunca tivessem saído. O olhar segue os gatafunhos, o pensamento destrinça frases e e

A Língua do Michael Jordan

O ídolo (imagem retirada da Internet) Um dia destes, enquanto assistia a um treino do meu filho, reparo que ele está sempre de língua de fora... Ele não é daqueles miúdos que põem a língua de fora quando escrevem ou quando fazem qualquer coisa que lhes exija um pouco mais de concentração, por isso estranhei! No intervalo que o treinador lhes dá para irem beber água, ele chega-se ao pé de mim e diz: -Viste, mãe, estive de língua de fora como o Michael Jordan? (Para quem não conhece, o Michael Jordan, o mocinho aqui ao lado, foi um dos melhores jogadores de basquetebol do mundo e uma das suas características era jogar com a língua de fora.) O meu filho estava todo orgulhoso a imitar o Michael Jordan, sentia-se o melhor jogador do mundo à custa da sua linguinha ao vento, mas eu (estúpida!) estraguei a sua alegria, com esta minha triste saída: -Pois, mas se não pões a língua para dentro ainda a mordes se te derem um encontrão, além de pareceres um tontinho... Arrependi-me da parte do

Miúdos

Da janela, vejo os miúdos da escola a brincarem no recreio e invejo-lhes a liberdade.  Também era assim em pequena. Saltava e brincava sem amarras. Fazia pinos e rodas pelas ruas, solta como uma andorinha. Era livre. Tão livre quanto possível.  Hoje, não. Estou presa dentro deste corpo e mente. Corpo que não cede à mente. Mente que não tem espaço para viajar. Aqueles miúdos têm controlo no corpo porque ele lhes responde. Podem esticá-lo ou dobrá-lo a bel-prazer. Os miúdos têm o poder de observar, cheirar e tocar tudo o que vida lhes dá. A mente leva-os longe. Vai atrás da flor que flutua ao vento, do bichinho de contas que se enrola ao toque, da formiga que muda de percurso quando encontra um obstáculo. A mente deles está livre de merdas. Tem espaço para todas as coisas novas, é ampla, sem muros ou barreiras onde possa embater. Já a minha... Já a minha é qual um labirinto sem saída. Fica às voltas nas agruras da vida, nas paredes que fui erguendo, mas pedras em que vou tropeçando, nas

O engano

O meu homem, enquanto estende a roupa (sim, cá em casa a roupa é cena dele. Somos estranhos, eu sei!), ouve música. Aliás, ele ouve sempre música, mas hoje, enquanto estava a ouvir música e a estender a roupa e eu a arrumar a loiça do almoço (sim, apesar do moço tratar da roupa, eu também faço umas coisitas cá por casa. Sim, eu sei, parece que somos mesmo estranhíssimos!), pôs os Pink Floyd a tocar. Ao som dos Pink Floyd, comecei a pensar que hoje há pouca cultura que faça as pessoas pensarem como por exemplo os Pink Ployd faziam; que conteste os poderes; que ponha em causa as ditas verdades universais; que cause indignação e contestação. Vivemos na sociedade do engano. Julgamos que temos liberdade, quando somos nós mesmos que restringimos a liberdade, calando-nos. Já não defendemos causas, mandamos umas bocas e ficamo-nos por aí. Os poderes estão instituídos e aceitamo-los, pura e simplesmente, sem um ai realmente sentido. Encolhemos os ombros e distraímo-nos com outras coisas par

O Poeta (ou a Poetisa) é um Fingidor

Em mais uma conversa pré-sono, falávamos de umas supostas pretendentes do J.  - Ela disse que a minha letra era muito bonita! - Oh, então está apaixonadíssima. Qualquer pessoa, no seu perfeito juízo, sabe que a tua letra não é nada bonita. Ela é voadora, nunca está toda sobre a linha. Mas bonita, não! Definitivamente, só uma pessoa apaixonada pode achar a tua letra bonita. - Eh eh eh eh! Pois é. Pois, deve estar! - E tu? - Não sei. Ainda não sei. - Mas há mais alguma menina que faça esse coraçãozinho bater com mais força? - Há. - Há? Quem? - A M. - E quem é a M.? Se é que posso perguntar? - É aquela que vimos no outro dia, que tem o cabelo assim, mais ou menos, do tamanho do teu. - Pois... Não sei. Sabes que há umas meninas lá da tua escola que eu confundo sempre. Nunca sei quem é quem. Mas não faz mal. Depois vejo se descubro. Achas que o coraçãozinho dela também bate com mais força por ti? - Não sei. - Mas porque é que esse coração acelera? - Também n